O ano era 1999, Giselle Helena de Paula Rodrigues, à época com 25 anos, cursava o último ano de medicina e passava pelo estágio de pediatria em Sorocaba, interior de São Paulo, quando recebeu um prontuário incomum. Nos papéis estavam os dados de um caso de progéria, uma condição raríssima que atinge um a cada 20 milhões de nascimentos.
A paciente em questão havia sido tratada no ambulatório da faculdade e morrido aos 18 anos, mas com a aparência de uma pessoa de 80. Naquela época, de acordo com a Pontifícia Universidade Católica de Sorocaba (SP), apenas 70 casos eram conhecidos mundialmente. Com um prontuário físico nas mãos e interessada em estudar algo até então pouco falado, Giselle iniciou pesquisas a respeito da doença.
“Na época, as pesquisas bibliográficas não eram tão fáceis como hoje. Então, tive que buscar artigos científicos (físicos) e procurar no arquivo do hospital o prontuário (também físico) dela com todos os exames, imagens, etc”, relembra a médica, que atualmente é doutora em cardiologia e professora de clínica médica na PUC de Sorocaba.
“Eu não a conheci pessoalmente, mas sim todos os relatos que haviam sido feitos do caso dela. O diagnóstico, tratamento e acompanhamento foi todo realizado em Sorocaba”, completa.
Também conhecida como Síndrome de Hutchinson-Gilford, a progéria é caracterizada pelo envelhecimento precoce do corpo humano. A condição é a oposta à retratada no filme “O Curioso Caso de Benjamin Button”, estrelado por Brad Pitt, onde a trama é marcada pelo rejuvenescimento do protagonista, que nasce com a aparência de um idoso.
Conforme Giselle explica, a condição é uma síndrome rara e fatal da infância. “A criança com progéria geralmente tem uma aparência muito normal na primeira infância, até os dois, três anos de vida. Depois ela começa a apresentar alterações de crescimento, atraso nesse crescimento, com baixa estatura e baixo peso”, diz.
É durante o crescimento que a criança desenvolve uma aparência facial bastante característica. “É um rosto desproporcionalmente pequeno em relação à cabeça. A mandíbula é pequena, tem uma má formação dos dentes, os olhos são bem preeminentes, tem uma carinha bem característica disso”, completa Giselle.
Após os três primeiros anos de vida, outras condições causadas pela progéria passam a ser visíveis no corpo da criança, como a queda de cabelo. Ela também envolve uma aterosclerose generalizada, que ocorre quando placas de gordura se desenvolvem nas paredes das artérias, tornando-as rígidas.
“[Também envolve] doença cardiovascular, acidente vascular cerebral, doenças de quadril, perda de gordura subcutânea que fica embaixo da pele. Começa a ter uma ‘carinha’ de fato de envelhecimento”, explica a especialista.
Devido aos problemas acarretados pela condição, a média de idade de crianças diagnosticadas com progéria é de 14 a 15 anos. “Essas crianças geralmente morrem por doença cardiovascular, por aterosclerose […] como qualquer outra doença cardíaca, essas crianças podem ter hipertensão, AVC, dor no peito, aumento do coração e insuficiência cardíaca”, completa.
As instituições internacionais de doenças raras dizem que existem, aproximadamente, 400 crianças com progéria no mundo todo. Mas, segundo Giselle, até 2020, só 130 eram conhecidas, sendo que 20 estavam nos Estados Unidos. “É uma doença muito, muito rara e que nos ensina bastante”, diz.
Por se tratar de um caso raro, o estudo sobre a paciente atendida em Sorocaba chamou a atenção em diversos meios científicos. Como Giselle sempre se envolveu com estudos de envelhecimento, ela levou o estudo de progéria para congressos de geriatria.
“Quando você leva o caso de uma criança para um congresso de geriatria, de fato chama muita atenção. Eu era muito jovem na época, eu tinha acabado de me formar. Então era uma médica muito jovem levando um caso muito raro para pessoas que não tinham tido a oportunidade de ter contato com essa história”, relembra.
Reconhecimento internacional
Na época, a então estudante tinha o interesse de se especializar na área de geriatria, área que estuda e trata doenças e condições que estão relacionadas ao envelhecimento. Como a doença, até então pouco falada, envolvia a juventude e o envelhecimento, Giselle uniu a pediatria e a geriatria para estudar o caso.
Para isso, ela contou com a ajuda de dois médicos: Izilda das Eiras Tâmega, chefe do departamento de pediatria onde fazia estágio, e Vicente Espínola, chefe de geriatria da PUC na época. A família da paciente foi procurada para que ela pudesse se aprofundar na história.
“Ela havia falecido com 18 anos, com uma aparência de 80, exatamente como a literatura nos mostra. A partir dessa descrição de caso, isso tomou uma proporção um pouco maior do que a gente imaginava”, comenta.
O caso foi apresentado em três congressos nacionais: em 1999, no XVI Congresso da Sociedade Universitária Médica de Estímulo à Pesquisa, em Sorocaba (SP); no IX Simpósio de Geriatria e Gerontologia da Aeronáutica, em 2000, no Rio de Janeiro, e no 2º Congresso Paulista de Geriatria e Gerontologia, em 2001, em São Paulo.
Após idas a congressos nacionais, a médica expandiu seu alcance e apresentou o caso em países como Chile, Canadá e Estados Unidos, além de ter o estudo compartilhado nas revistas Annales de Génétique, Pediatria Atual e Nature, uma das maiores revistas científicas do mundo.
Para a médica, a importância do estudo sobre a paciente de Sorocaba tem várias frentes: a oportunidade de estudar o processo de envelhecimento em um curto período de tempo, a curiosidade científica e a possibilidade de ter um estudo como esse no Brasil.
“Os nossos idosos vivem bastante e a gente acompanha esse processo durante décadas. Numa situação como essa, a gente consegue avaliar esse pseudo-envelhecimento muito rapidamente […] Além disso, a doença rara, pelo próprio nome, causa uma curiosidade científica importante. Por que isso está acontecendo? Essa mutação genética, que é a causa da progéria, a gente consegue, agora com a medicina genética, antecipar ou até mesmo reverter”, diz.
Por ter sido um estudo que surgiu em uma cidade do interior de São Paulo e ganhou proporções internacionais é importante para estimular a juventude.
“Não é porque você está numa universidade no interior que coisas extraordinárias não acontecem. Essa aconteceu e que me levou para o mundo inteiro e me deu a oportunidade de conhecer pessoas e estudar em lugares que possivelmente outros não tiveram. Essa é a grande questão: que a gente estimule a pesquisa científica junto aos nossos alunos”, finaliza.