Uma análise de satélite aponta que o avião da Voepass que caiu na última sexta-feira (9) em Vinhedo voou entre oito e dez minutos dentro de uma formação de gelo severo —uma condição climática que o manual da fabricante classifica como de “emergência” e que pode levar a aeronave, um ATR 72-500, a perder sustentação e girar.
As 62 pessoas que estavam a bordo morreram no acidente. As causas do acidente estão sob investigação do Cenipa.
Entenda a condição crítica enfrentada pelo avião:
- O manual da aeronave diz que “gelo severo indica que a taxa de acumulação é tão rápida que os sistemas de proteção de gelo falham em remover a acumulação de gelo (1 centímetro em menos de 5 minutos)”.
- Ainda de acordo com o manual, “a equipe precisa sair dessa condição imediatamente”.
- A análise do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis), da Ufal, estima que o avião da VoePass tenha ficado de 8 a 10 minutos sob gelo severo. “É um tempo considerável para uma condição extremamente desfavorável”, disse o meteorologista Humberto Barbosa.
- Um laudo ao qual o jornal O Globo teve acesso mostra ainda que o avião esteve com o sistema de degelo inoperante em pelo menos seis ocasiões em três dias de julho de 2023. A empresa diz que o mecanismo funcionava no dia do acidente.
- A aeronave tem luzes na cabine para alertar a tripulação sobre o impacto do gelo. Quando a exposição ao gelo persiste, o avião perde sustentação; o sinal visível dessa condição é o manche tremer. A saída de pilotos em condição sob gelo é algo treinado em simuladores, disse um instrutor de ATR ao g1.
Quando o gelo severo acumulado nas superfícies de voo, como as asas e o estabilizador horizontal, não é removido pelo sistema antigelo, ele pode “degradar seriamente a performance e controlabilidade da aeronave”, diz o manual obtido pelo g1.
A reconstituição do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis), da Universidade Federal de Alagoas, revela que o avião da VoePass enfrentou uma zona meteorológica crítica e atravessou nuvens com temperatura abaixo de -40 °C.
O laboratório combinou imagens de satélites e radar, associadas às coordenadas geográficas da rota do voo. O meteorologista Humberto Barbosa, coordenador do Lapis, disse “ficou assustado” quando olhou as condições meteorológicas do estado de São Paulo no dia 9.
“Naquela rota, o plano de voo ia pegar uma situação crítica, não só pela área de formação de gelo severa, porque você tinha essas condições termodinâmicas, mas também de ventos nessa região que estavam sendo alimentados por outros sistemas”.
O estado já estava sob influência de uma frente fria, mas ele percebeu que havia outros componentes impactando as variáveis do local. Barbosa explicou que dois fatores ajudaram a “injetar” ainda mais umidade na região do acidente:
- Ciclone extratropical: fenômeno se formou sobre o Uruguai e o Rio Grande do Sul na manhã da sexta-feira;
- Fumaça das queimadas: foi levada pelo Sudeste pelo ar seco da Amazônia, e ficou nos altos níves da atmosfera, em forma de aerossóis, o que deixou a água das nuvens ainda mais fria e líquida.
Barbosa explicou que a aeronave enfrentou condições meteorológicas adversas durante todo o trajeto. Ainda no Paraná, o avião vinha sendo empurrado por ventos fortes. Ao chegar ao norte do estado e entrar em São Paulo, a aeronave entrou em uma área de formação de gelo – a parte mais crítica da rota. De acordo com o pesquisador, o avião chegou a enfrentar temperatura abaixo de 40 graus negativos neste trecho.
“Eu extraí todas as informações estimadas com base em satélite, alguns parâmetros de microfísica, para aquele ponto, para aquele horário, para a aeronave que estava ali, o que que a gente tem? Tinha conteúdo de gelo em altos níveis”, explica Barbosa.
O pesquisador explica que, nesta temperatura, a água estava líquida, mas por ser muito gelada, se adere rapidamente ao avião. “Numa alta velocidade, esse molhado pode virar sólido porque mexe na aerodinâmica”, disse Barbosa.
De acordo com o laboratório, ventos fortes, com velocidade em torno de 53 km/h, também estavam na mesma direção do voo, trazendo ainda mais instabilidade ao avião.
Barbosa destaca ainda que, pelos vídeos gravados pelos moradores, as condições meteorológicas na superfície eram estáveis, enquanto em níveis mais altos da atmosfera os ventos estavam fortes. “E essas diferenças de corrente, vento calmo em superfície e vento muito agitado [em níveis altos] é o que também traz muita turbulência naquela situação e que pode junto com outros fatores de acúmulo de gelo ter colocado ainda mais desafio ao piloto”.
Caixa-preta gravou gritos e pergunta do copiloto sobre ‘dar potência’ à aeronave
O gravador de voz da cabine do avião ATR-72 que caiu em Vinhedo na última sexta-feira (9) registrou conversas do copiloto sobre “dar potência” à aeronave minutos antes da queda, além de gritos na aeronave.
As cerca de duas horas de transcrição foram feitas pelo laboratório de leitura e análise de dados do Centro de Investigação e Prevenção e Acidentes (Cenipa), vinculado à Força Aérea.
Segundo os investigadores, a análise preliminar dos dados indica que o ATR 72-500 perdeu altitude de forma repentina. Além disso, aponta que a análise do áudio da cabine, sozinha, não é capaz de cravar uma causa aparente para a queda.
A transcrição do áudio da caixa-preta mostra que, ao perceber que o avião estava perdendo sustentação, o copiloto Humberto de Campos Alencar e Silva perguntou o que estava acontecendo.
Ele disse que era preciso “dar potência” – uma tentativa de estabilizar a aeronave e impedir a queda. Mas isso, infelizmente, não foi possível.
Cerca de um minuto se passou entre a constatação da perda de altitude e o choque do avião contra o solo. Neste tempo, segundo os investigadores, o áudio registra que a tripulação tentou reagir.
A gravação é finalizada com gritos e com o estrondo do choque da aeronave contra o chão.